Markus Müller e Innocent Balagizi.
Abrimos um seminário sobre a medicina tradicional em Asmara, na Eritréia, com a pergunta “Algum de vocês possui experiência com a medicina tradicional?” Houve um silêncio completo, até mesmo hostil, na sala. Finalmente, alguns participantes disseram “Somos cristãos. Não temos nada a ver com isso.”
Apresentamos, então, uma planta Datura stramonium, que havíamos colhido na frente do centro de treinamento, e explicamos como a usamos nos hospitais no Congo. De repente, a audiência voltou à vida novamente. Todos conheciam esta planta
Ficamos sabendo que ela era usada nas famílias dos participantes para muitas doenças, desde dores de dentes até abscessos e cólicas abdominais. No final, falamos por mais de uma hora só sobre os usos desta planta!
Esta forte reação à medicina tradicional é encontrada freqüentemente em muitas partes do mundo. Em Uganda, um paciente contou-me “Todos nós a usamos, mas não gostamos de falar sobre isso, pelo menos não na frente de um médico missionário.”
O que é a medicina tradicional?
Parte do problema é que este é um assunto complicado. Não há uma definição única e clara de medicina tradicional. Entretanto, há uma enorme variedade de métodos utilizados para o tratamento de doenças. Estes métodos são baseados na experiência pessoal ou no conhecimento compartilhado ao longo de muitas gerações. Embora haja alguma boa evidência proveniente de pesquisas científicas da eficácia dos medicamentos tradicionais, as pessoas usam os métodos tradicionais principalmente por causa da sua própria experiência, com base nas suas próprias observações. Esta é, na verdade, a única característica comum de todos os diferentes métodos de tratamento de doenças que chamamos de medicina tradicional.
Para ajudar a nossa compreensão, pode ser útil dividir a medicina em três grupos distintos:
- Medicina popular Desde a infância, as pessoas usam as plantas medicinais para tratar problemas de saúde e doenças, muitas vezes, com grande eficácia. No leste da República Democrática do Congo, as mães do povo Bashi, por exemplo, dão duas ou três gotas de folhas expremidas de Tetrademia riparia para os seus bebês beberem, quando eles têm cólicas abdominais. Para tratar a febre, as pessoas procuram folhas da árvore
Vernonia amygdalina (comumente conhecidas como “folhas amargas”), e, para tratar vermes intestinais, são usadas as folhas da pequena erva Celosia trigyna.
Há duas coisas em comum nestes tratamentos:
- Eles são oferecidos e usados por pacientes ou seus familiares.
- Eles são gratuitos.
As famílias trocam observações sobre o uso destas plantas sem reservas, e não há segredos sobre os seus usos.
Algumas plantas medicinais também são usadas como alimento, outras são usadas apenas medicinalmente.
- A medicina dos curandeiros tradicionais Para os problemas de saúde difíceis de tratar, os pacientes procuram a ajuda de pessoas que praticam a medicina moderna ou a medicina tradicional.
Os curandeiros tradicionais são, muitas vezes, especialistas. As parteiras tradicionais podem ser encontradas em quase todos os povoados. Outros curandeiros tradicionais são as pessoas que endireitam ossos fraturados ou deslocados, ou os especialistas em doenças mentais ou crônicas. Muitas vezes, o trabalho dos curandeiros não se limita apenas aos problemas de saúde física. Os problemas sociais e religiosos, tais como conflitos entre pessoas, ou entre o homem e os demônios ou deuses, são freqüentemente vistos como a causa das doenças. Assim, o tratamento requer procedimentos religiosos ou sociais.
Ao contrário da medicina popular, os procedimentos do tratamento dos curandeiros são secretos e não podem ser discutidos abertamente. Eles só podem ser transferidos de geração a geração, dentro das famílias dos curandeiros, e estes devem ser pagos por seu trabalho. O preço do tratamento depende, muitas vezes, do status social do paciente. O pagamento é, muitas vezes, feito através de bens, tais como galinhas ou cabras.
Nos círculos cristãos, os curandeiros tradicionais são geralmente vistos com desconfiança, ou até mesmo medo, pois eles podem trabalhar com poderes espirituais que entram em conflito com a crença cristã. Porém, há, também, curandeiros como as parteiras tradicionais e os herbanários, que estão bem integrados nas comunidades eclesiásticas.
- Sistemas conceituais de medicina tradicional Há, também, sistemas holísticos de medicina tradicional baseados não só no conhecimento com base na observação, mas, também, em teorias documentadas das causas das doenças. Ayurveda, na Índia, unani, nos países árabes, ou a medicina tradicional chinesa são exemplos importantes destes sistemas.
Plantas medicinais nos cuidados de saúde primários
Em muitos países dos trópicos, as pessoas possuem pouco acesso à medicina moderna. Nas regiões remotas do nordeste da República Democrática do Congo, onde trabalhamos, não há praticamente nenhuma infra-estrutura para o transporte de medicamentos importados, mesmo que a maioria dos pacientes pudessem pagá-los.
Dada esta situação, começamos a nos perguntar se a produção local de medicamentos a partir de plantas medicinais poderia ser útil. Começamos usando algumas plantas conhecidas para tratar problemas médicos comuns, para as quais existiam informações sobre as doses, a eficácia e os efeitos colaterais. Depois, criamos uma horta de plantas medicinais e, com a permissão dos departamentos de saúde regionais, produzimos e usamos alguns medicamentos feitos com ervas, quando não havia medicamentos importados (veja exemplos na tabela, na página 2). Os pacientes gostaram da maioria destes remédios, e, como resultado, foram criadas várias hortas medicinais, com uma enorme participação da comunidade.
Nos últimos anos, a República Democrática do Congo passou por períodos muito difíceis. Alguns postos de saúde foram completamente saqueados. Nestes casos, a produção local de medicamentos feitos com ervas continuou, permitindo que estes centros oferecessem os seus serviços novamente.
Um fórum para a medicina tradicional e moderna
Também incentivamos a criação de um fórum para os curandeiros tradicionais, médicos e enfermeiros, administradores de serviços de saúde e autoridades políticas. Aqui, discutimos os problemas da saúde e as contribuições para o atendimento à saúde oferecidas por ambas as medicinas tradicional e moderna. Alguns aspectos foram muito delicados. Os médicos eram cépticos quanto à eficácia e aos possíveis efeitos colaterais da medicina tradicional e questionaram a ética fundamental desta forma de tratamento.
Os curandeiros tradicionais haviam aprendido através das suas experiências a serem cuidadosos e, assim, não queriam que os procedimentos dos seus tratamentos fossem investigados sem a garantia de proteção dos seus conhecimentos. Para a surpresa dos funcionários médicos, eles também reclamaram dos baixos padrões éticos da medicina moderna.
Em particular, o nosso trabalho com a Artemisia annua (da qual derivou-se um novo grupo de antimaláricos – veja a página 12) tem ajudado a incentivar a participação total de todas as partes neste fórum. Ao trabalharmos juntos, aprendemos muita coisa uns com os outros. Estamos convencidos de que, aumentando-se a cooperação entre a medicina tradicional e a medicina moderna, daremos uma contribuição consideravelmente melhor aos cuidados de saúde do que cada uma delas poderia dar sozinha.
Markus Müller é médico e trabalhou por muitos anos na República Democrática do Congo. Sua sede agora é no Instituto Alemão de Missão Médica, PO Box 1307, D-72003 Tübingen, Alemanha.
Innocent Balagizi é biólogo e trabalha em Bukavu, na RD do Congo, com ênfase especial em plantas medicinais tradicionais. Seu endereço é BP 388, Cyangugu, Ruanda.